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Pastoral/Nocturno

 

 

 

 

Manuel João Aguas

 

 

 

 

 

Traveller

 

com o apoio de

 

PRESENTE 

Edições de Autor

 

 

32 pp | 17,5x12,5

 

Capa de Sérgio Pereira

a partir de gravuras de Tiago Costa

 

           

1ª edição | 70 exemplares 

Lisboa, 2014

 

Depósito Legal | 376288/14

 

7€ | 5£ | 8$

 

 

Para pedidos por transferência

ou à cobrança, entre em contacto.

Oferta dos portes.

 


Início de «Pastoral»

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

Andrezes, estrada para Salir e Alte. Não esqueci. Nas cercanias do pomar à sombra dos loendros em flor ou no alto das fragas, a brisa correndo de sueste àquela hora em que o sol doira os corpos... Tão belo. Tão belo. Chego a duvidar que tenha acontecido. Outros nomes algarvios: Santa Bárbara de Nesce, Estoi, Querença, Tôr, Alportel. Terras de origem da tua vasta e trágica família. E o teu nome, uma consoante e três vogais. Disseste que era o melhor nome para se ter. No timbre da voz, a auto-confiança, o orgulho infantil. Gosto de ser quem sou, pareces afirmar destemidamente. É o teu lado animal, feliz pelo mero facto de existires. O apego à vida, a ambição (forças nascidas do exemplo desidioso e da miséria física) são as tuas grandezas profundas com que apreendes a imensidão envolvente e a abarcas de uma só vez, a vista plena de fulgor e de ansiedade. Que inveja eu tive!

 

(...)

 

 

Não te contei as minhas tristezas, não quis assustar-te; estás sozinho no mundo. Numa idade em que não se descrê que a felicidade esteja ao virar da esquina ou por detrás do cerro. Somos dois rapazes no esplendor da juventude; eu com uma vida tumultuosa pela frente e tu à beira da morte. Mas nenhum de nós o pode prever.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Início de «Nocturno»

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Apanho-te numa das tuas mentiras. Daquelas que me ferem profundamente. Invisto contra ti. Empurro-te com violência, vais colidir num móvel, desequilibras-te, quase cais. Recompões-te e num ápice atiras-te a mim. Os nós dos teus dedos chocam violentamente no meu maxilar. Vacilo, estatelo-me no chão. Ainda me tentas agredir com um pontapé mas eu desvio-me a tempo e falhas o alvo. Recuas. Eu levanto-me, vejo gotículas do meu sangue a pingarem na carpete. Lanço-te um insulto. Faço questão em gritar as palavras que sei que mais te ofendem. Levo-te ao limite. É então que surges do canto da sala e num único movimento agarras numa garrafa pelo gargalo, bates com ela na ombreira da porta, um jorro de líquido grená mancha a parede branca e tu avanças na minha direcção a mão em riste. Agarras-me e encostas-me a um armário. A tua respiração ofegante sopra junto às minhas narinas num odor de álcool adocicado. Pressionas a aresta do vidro junto à minha maçã-de-adão. Sinto a pele do pescoço a ceder e um fluido escorrendo até à clavícula. Olho-te nos olhos (instante que se prolonga uma eternidade). Por fim, deixo que todas as forças me abandonem; entrego-me à energia do teu corpo. Ouço-me a murmurar numa voz sensual: vá, mata-me.

 

Meu duplo, meu inimigo.

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